CARLOS ALBERTO MOURA LEITE
SEGUNDA-FEIRA, 23/3/2020
A situação financeira das empresas brasileiras está sendo drasticamente afetada pela disseminação do vírus Covid-19, conhecido por Coronavírus, tendo como consequência, a redução da produção de bens, sua comercialização e o consumo.
Ainda não é possível dimensionar o tamanho do impacto na economia brasileira e os setores que serão mais atingidos, contudo, é possível afirmar que as relações contratuais serão inevitavelmente atingidas, o que já começa a ocorrer.
São inúmeros os contratos celebrados em uma realidade econômica e, doravante, executados em um cenário de crise como o vivido pelo Brasil e o mundo em decorrência da pandemia do Coronavírus.
É verdade que o contrato faz lei entre as partes (pacta sunt servanda), contudo, essa máxima latina não pode ser vista de forma absoluta, pois o panorama contratual é outro, o próprio Código Civil preceitua que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social dos contratos (art. 421, Código Civil).
Não é demais destacar que o referido artigo 421 foi acrescido do parágrafo único pela Lei da Liberdade Econômica (lei 13.874/19) que estabeleceu o princípio da intervenção mínima nos contratos em obediência à força vinculante dos contratos, contudo, prevê a revisão contratual no caso de excepcionalidade.
Art. 421.
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.
A possibilidade de revisão ou até mesmo resolução contratual com base na pandemia trata-se de caso claro e clássico de “excepcionalidade” que pode ser facilmente comprovada pelas necessárias políticas públicas para contenção da disseminação do vírus.
A título de exemplo, houve determinação de fechamento dos Shopping Centers, proibição de eventos públicos, eventos esportivos, etc.
As relações contratuais serão inevitavelmente atingidas, como contratos de locação, de prestação de serviços, etc. O cumprimento das obrigações contratuais na forma avençada será prejudicado em muitos casos.
Não há dúvida que a revisão contratual será imprescindível em muitos casos e, ainda que demande análise pormenorizada e individual, não se pode negar que se trata de situação excepcional.
Nesse ponto, destaca-se o art. 421-A introduzido no Código Civil pela citada Lei da Liberdade Econômica, no qual estabelece a possibilidade de revisão contratual de forma excepcional e limitada.
Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:
III – a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.
Não obstante a presunção de paridade e simetria dos contratos civis e empresariais, conforme destacado no caput do art. 421-A, a situação de pandemia e as medidas tomadas pelo Poder Executivo, caracterizam-se como eventos imprevisíveis que afastam a presunção.
Em complemento ao pacta sunt servanda, existe a regra da cláusula rebus sic stantibus, que traduz o entendimento de que o contrato faz lei entre as partes enquanto as coisas permanecerem na forma estabelecida na época do contrato.
A cláusula rebus sic stantibus levou a criação da teoria da imprevisão, que muito se discutiu a sua incidência no ordenamento jurídico brasileiro, conforme destacado nos artigos de lei já citados.
Veja que o art. 478 do Código Civil prevê até mesmo a resolução do contrato quando ocorrer a onerosidade excessiva em decorrência de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis.
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Portanto, está superado o entendimento de que o que é contratado é justo e não pode ser revisto, mesmo porque o contrato tem uma função social que supera os interesses particulares dos contratantes.
Ademais, a rigidez da pactuação, conforme preconizado pela pacta sunt servanda destoa frontalmente da realidade fenomênica, mormente, pelo acelerado processo de acontecimentos verificados nas relações intersubjetivas, notadamente nas comerciais e contratuais.
Como dito, o contrato tem uma função social que deve ser respeitada pelos contratantes, cabendo ao poder público (poder judiciário) coibir qualquer tipo de desequilíbrio contratual causado por um acontecimento imprevisível e/ou inevitável e que venha gerar onerosidade excessiva a um dos contratantes.
Portanto, a teoria da imprevisão tem cabimento nos contratos, desde que haja um fato imprevisto; ausência de estado moratório; dano em potencial (desequilíbrio contratual); e excessiva onerosidade de uma das partes e de extrema vantagem de outra.
Muitas empresas firmaram contratos levando em conta um cenário econômico, contudo, esse cenário está mudando drasticamente e abalando sobremaneira as atividades empresariais o que está gerando uma situação de impossibilidade do cumprimento dos contratos nos moldes avençados.
Não há dúvidas que a pandemia causada pelo coronavírus funciona como fator de desequilíbrio contratual.
Some-se a isso a existência de inúmeros contratos de adesão, com as cláusulas inteiramente elaboradas por um dos contratantes, sem qualquer possibilidade de alteração, a revelar cunho potestativo nítido.
Por outro lado, a aplicação da teoria da imprevisão não leva somente à resolução do contrato, mas também a sua modificação equitativa para que esse se convalesça, de modo a permitir o cumprimento do pactuado em harmonia com a ordem econômica e social vigente.
Muito embora a Jurisdição seja única, universal, inafastável e direito constitucional do cidadão (art. 5º, XXXV), não se está defendendo com esse artigo o demandismo, mas apenas traçando os contornos do debate que será inevitável.
Tanto é assim, que a questão pode ser resolvida de forma equitativa entre as partes, evitando-se a resolução do contrato pelo princípio da boa-fé.
É o que prevê o art. 479, do Código Civil, a saber:
Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.
Em suma, a pandemia do coronavírus pode ser considerada como fato imprevisível, em matéria de contratos, e dar ensejo a teoria da imprevisão para resolver o contrato (art. 478 CC) ou apenas operar a sua revisão com a modificação equitativa (art. 421, parágrafo único, art. 421-A e, art. 479, ambos do Código Civil).
E nem se argumente que a revisão ou readequação de tais cláusulas ofenderia a segurança jurídica, posto que tal primado tem por objetivo precípuo harmonizar as relações jurídicas.
A considerar, portanto, que a instabilidade gera efeito gravoso no meio social, de modo a impossibilitar o cumprimento de regras e condições estipuladas antes do seu evento, segue-se que a aplicação da teoria da imprevisão vem justamente no sentido de dar plena e integral aplicação ao princípio da segurança jurídica e certeza do direito.
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BRASIL. 2002. Lei n. 10406, de 10 de janeiro de 2020. Intitui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, 20 set. 2019.
BRASIL. 2019. Lei n. 13.874, de 20 de setembro de 2019. Institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica; estabelece garantias de livre. Diário Oficial da União, Brasília, 16 set. 1971.
MARTINS, Fernando Rodrigues. 2011. Princípio da Justiça Contratual. Coleção Prof. Agostinho Alvim. 2ed. São Paulo-SP: Saraiva.
TEDEDINO, Gustavo et al. 2012. Código Civil Interpretado. Volume II. 2ed. Rio de Janeiro-RJ: Renovar.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. Volume 2. 5.ed. São Paulo-SP: Atlas, 2005.
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*Carlos Alberto Moura Leite é advogado e sócio do escritório Souza Rodrigues e Lisboa Advogados.
Fonte: https://m.migalhas.com.br/depeso/322291/teoria-da-imprevisao-coronavirus