FONTE: https://www.conjur.com.br/2021-fev-01/direito-civil-atual-dispensa-inventario-pagamento-direto-parte
Por Carlos E. Elias de Oliveira
1) Introdução
Honra-nos trazer o presente debate a este formidável espaço da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (RDCC).
Neste artigo, cuidaremos de um assunto importantíssimo para o quotidiano de quem lida com Direito Sucessório: o pagamento direto, assim entendidos os valores pagos diretamente a herdeiros independentemente de procedimento judicial ou extrajudicial de inventário ou de arrolamento.
Morta uma pessoa, a regra geral é que a transmissão dos seus bens aos herdeiros deverá ocorrer por meio de um desses “burocráticos” procedimentos judiciais ou extrajudiciais, salvo quando a lei autorizar o pagamento direto. Focaremos aqui as hipóteses de pagamento direto da Lei nº 6.858/1980, que prevê esse pagamento direto para alguns casos de verbas trabalhistas, tributárias e de investimento.
O objetivo é explicar essa figura e discutir um ponto relavantíssimo: o cônjuge e os demais herdeiros podem reivindicar a sua meação e o seu quinhão na hipótese de pagamento direto?
Em outras palavras, as hipóteses de pagamento direto fundadas na Lei nº 6.858/1980 caracterizam ou não uma sucessão irregular [1] e elas devem ou não respeitar a meação do viúvo sobre os créditos do de cujus? Ou elas representam apenas regras de caráter procedimental que não exoneram o beneficiário de, no pertinente feito de inventário, fazer as devidas compensações para a repartição igualitária da herança com os demais herdeiros e para entregar a meação do viúvo?
Antecipamos nossa posição: o pagamento direto na forma da lei acima tem caráter apenas procedimental, e não de direito material, pois seu objetivo foi apenas o de desburocratizar o acesso de herdeiros a valores deixados pelo de cujus. Logo, essas hipóteses não afastam o dever de respeitar a meação do cônjuge nem o quinhão de outros herdeiros. Não se trata aí de sucessão irregular ou anômala, portanto.
2) Regra geral
Verbas trabalhistas, tributárias e de investimento na forma da Lei nº 6.858/1980 podem ser objeto de pagamento direto, ou seja, não dependem de prévio procedimento judicial ou extrajudicial de inventário ou de arrolamento. Dizem-no tanto o referido diploma quanto o artigo 666 do CPC [2].
Explica-se.
É permitido que, independentemente de inventário ou de arrolamento, os dependentes habilitados perante o INSS ou o órgão público competente (no caso de regime especial de previdência) ou, à sua falta, os sucessores (na forma da lei civil) indicados em alvará recebam, independentemente de procedimento de inventário ou de arrolamento, as verbas trabalhistas, de FGTS ou de PIS-Pasep do falecido. É o artigo 1º, caput, da Lei nº 6.858/1980.
Trata-se do que, na prática forense, designa-se de “pagamento direto”, pois é feito aos “herdeiros” sem necessidade de procedimento judicial ou extrajudicial de inventário ou de arrolamento.
Esse pagamento direto é também permitido para valores devidos a título de restituição de Imposto de Renda (ou de outros tributos) bem como para valores de até 500 OTNs em aplicações financeiras ou em contas bancárias (desde que inexistam outros bens a inventariar). É o artigo 2º, caput, da Lei nº 6.858/1980.
Na prática, isso significa que, se alguém morrer deixando, como herdeiro, um filho de idade inferior a 21 anos que estava habilitado como dependente do falecido no INSS [3], esse jovem poderá receber os valores supracitados (verbas trabalhistas, previdenciárias, tributárias e de aplicações financeiras) que pertenciam ao seu pai independentemente de prévio processo de inventário ou de arrolamento. Basta-lhe fazer o pedido administrativo.
O devedor (empregador, poder público e bancos) poderá pagar esses valores diretamente a esse filho sem exigir prévia inventário, arrolamento ou adjudicação.
Se o falecido aguardava o desfecho de alguma reclamação trabalhista para receber suas verbas trabalhistas, o filho dependente supracitado poderá requerer ao juízo trabalhista que lhe expeça alvará de levantamento sem necessidade de inventário.
2) Quem pode pedir o pagamento direto?
Nas hipóteses dos créditos especiais citados na Lei nº 6.858/1980, podem pedir o pagamento direto:
- a) Os dependentes habilitados perante o órgão de previdência (INSS ou, no caso de regime especial de previdência, o órgão público pertinente);
- b) Os demais sucessores, desde que autorizados por alvará expedido por juiz que os tenha reconhecido como tal com base na legislação civil.
Se o dependente não estiver formalmente habilitado, a Justiça Trabalhista flexibiliza a regra e admite que o dependente pleiteie o pagamento direto com base na Lei nº 6.858/1980 mediante comprovação do seu enquadramento entre os dependentes legais na forma da legislação previdenciária ou estatutária. A propósito, assim já decidiram o TST (RR-10959-59.2014.5.15.0046, 2ª Turma, Relatora Ministra Maria Helena Mallmann, DEJT 26/06/2020) e o STJ (REsp 1289346/DF, 2ª Turma, Rel. Ministro Castro Meira, DJe 20/06/2012).
3) Levantamento de valores tributários e de investimento até 500 OTNs
Não havendo outros bens a inventariar, é cabível o pagamento direto aos dependentes habilitados no ente previdenciário das verbas tributários e de investimento mencionadas no artigo 2º da Lei nº 6.858/1980 até o limite do valor de 500 OTNs, caso em que o valor sobejante deverá sujeitar-se ao procedimento de inventário e arrolamento. O STJ já decidiu assim em caso de valores de restituição de imposto de renda (REsp 1085140/SP, 4ª Turma, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 17/06/2011 [4]).
Continuaremos aprofundando o assunto na próxima semana.
* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).
[1] A sucessão irregular ou anômala é entendida como aquela que é regida por normas próprias e que, portanto, não segue os arts. 1.829 e seguinte do CC. A título de exemplo, podemos citar: (1) a transmissão dos direitos autorais para o domínio público no caso de o autor falecido não ter deixado herdeiros (artigo 45, I, da Lei nº 9.610/1998); (2) o direito de acrescer em favor dos demais coautores na hipótese de um deles falecer sem deixar herdeiros (artigo 42, parágrafo único, da Lei nº 9.610/1998); (3) o artigo 18, § 2º, do Decreto-Lei nº 3.438/1941 proíbe que sucessão em favor de cônjuge estrangeiro em terreno de marinha; (4) o artigo 520 do CC estabelece que o direito de preferência não se transmite aos herdeiros, o que representa um exemplo de sucessão irregular ou anômala, porque prevê regra sucessória diversa da prevista para a sucessão legítima; (5) o artigo 1º, § 2º, da Lei nº 6.858/1998 estabelece que, na hipótese de inexistir dependente ou sucessores, as verbas trabalhistas, de FGTS e de PIS-PASEP deverão ser revertidas respectivamente em favor do Fundo de Previdência e Assistência Social, do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço ou do Fundo de Participação PIS-PASEP; (6) o artigo 2º, parágrafo único, da Lei nº 6.858/1998 fixa que, se não houver dependente ou sucessor, deverão ser revertidas ao Fundo de Previdência e Assistência Social os valores devidos a título de restituição de Imposto de Renda (ou de outros tributos) bem como os valores de até 500 OTNs em aplicações financeiras ou em contas bancárias (desde que inexista outros bens a inventariar).
[2] “Artigo 666 – Independerá de inventário ou de arrolamento o pagamento dos valores previstos na Lei nº 6.858, de 24 de novembro de 1980”.
[3] Para filhos, a presunção absoluta de dependência perante o INSS e, no caso de regime especial de previdência, perante os órgãos públicos federais é para filhos de até 21 anos (artigo 16, I, da Lei nº 8.213/1991 e artigo 197, parágrafo único, I, da Lei nº 8.112/1990).
[4] No caso, o STJ manteve o deferimento do pedido de alvará judicial, conforme este excerto do relatório do voto do relator:
“Silvandira Stopa Rodrigues ajuizou pedido de alvará judicial perante a 3ª Vara de Família e Sucessões do Foro Regional de Santana/SP, pleiteando o levantamento de parte da restituição de imposto de renda de seu falecido marido. Noticiou ainda que não há outros bens ou direitos a inventariar, e também que, do casamento, advieram quatro filhos, sendo que três renunciaram as partes que lhes tocariam no imposto retido. Assim, pleiteou a autora o levantamento de 50% devidos a ela, a título de meação, mais 4/5 do remanescente em razão da renúncia”.